Martin Lloyde-Jones |
por F. Solano Portela Neto
V. A MENSAGEM DA REFORMA
PARA OS DIAS DE HOJE
As mensagens proclamadas
pela Reforma continuam sendo pertinentes aos nossos dias. Da mesma forma como a
Palavra de Deus é sempre atual e representa a Sua vontade ao homem, em todas as
ocasiões, a Reforma, com suas mensagens extraídas dessa mesma Palavra,
transborda em atualidade para a cena contemporânea da Igreja Evangélica.
Vejamos apenas alguns pontos pregados pelos Reformadores e a sua aplicação
presente:
A. A Reforma resgatou o
conceito de pecado - Rm 3:10-23
A venda das indulgências
mostra como o conceito do pecado estava distorcido na ocasião da Reforma do
Século XVI. A Igreja Medieval e, principalmente, as ações de Tetzel, fugiram
totalmente da visão bíblica de que pecado é uma transgressão da Lei de Deus,
qualquer falta de conformidade com Seus padrões de justiça e santidade. A
essência do pecado foi banalizada ao ponto de se acreditar que o seu resgate
podia se efetivar pelo dinheiro. É fácil ver as implicações que a falta de um
conceito bíblico de pecado traz para outras doutrinas chaves da fé cristã. Por
exemplo: se o resgate é em função da soma de dinheiro paga, como fica a
expiação de Cristo, qual a necessidade dela? Ao se insurgir contra as
indulgências, Lutero estava, na realidade, reapresentando a mensagem da Palavra
de Deus sobre o homem, seu estado, suas responsabilidades perante o Deus Santo
e Criador e sua necessidade de redenção.
Hoje, estes conceitos
estão cada vez mais ausentes da doutrina da Igreja contemporânea. A mensagem da
Reforma continua necessária aos nossos dias. Estamos nos acostumando a ouvir
que todas as ações são legítimas; que pecado é uma conceito relativo e
ultrapassado; que o que importa é a felicidade pessoal e não a observância de
princípios. Mesmo nos meios evangélicos, existe grande falta de discernimento —
há uma preocupação muito maior com a necessidade de encontrar justificativas,
explicações e racionalizações do que com a convicção e o arrependimento.
B. A Reforma pregou a
doutrina da Justificação somente pela Fé - Gl. 3:10-14
A Igreja Católica havia
distorcido o conceito da salvação, pregando abertamente que a justificação se
processava por intermédio das boas obras de cada fiel. Lendo a Palavra, Lutero
verificou o quão distanciada essa pregação estava das verdades bíblicas — a
salvação é uma graça concedida mediante a fé e as boas obras não fornecem a
base para ela; mas apenas a evidenciam e são subprodutos dela. A salvação
procede da infinita misericórdia de Deus para com o homem pecador. É Deus quem
arranca o homem da lama e perdição do pecado. Enfim, a obra completa da
salvação é realizada por Deus.
Hoje, estamos novamente
perdendo essa compreensão – a mensagem da Reforma é necessária. A justificação
pela fé continua sendo esquecida e procura-se a justificação pelas obras.
Muitas vezes prega-se e procura-se a justificação perante Deus através do envolvimento
em ações de cunho social.
A justificação pela fé
está sendo, ultimamente, considerada um ponto secundário, mesmo no campo
evangélico. Assim, muitos têm partido para trabalhos de ampla cooperação, como
base de fé e de unidade, como vimos no pensamento expresso pelo documento já
referido: Evangélicos e Católicos Juntos.
C. A Reforma resgatou o
conceito da autoridade vital da Palavra de Deus - 2 Pe 1:16-21
Na ocasião da Reforma, a
tradição da Igreja já havia se incorporado aos padrões determinantes de comportamento
e da doutrina e, na realidade, já havia abandonado as prescrições das
Escrituras. A Bíblia era conservada distante e afastada da compreensão dos
devotos; era considerada um livro só para os entendidos, um livro obscuro e até
perigoso para as massas. Os Reformadores redescobriram e levantaram bem alto o
único padrão de fé e prática: a Palavra de Deus e, por este padrão, aferiram
tanto as autoridades como as práticas religiosas em vigor.
Hoje o mundo está sem
padrão. Mas não é somente o mundo, a própria Igreja Evangélica está voltando a
enterrar o seu padrão em meio a um entulho místico pseudo-espiritual – a
mensagem da Reforma continua necessária.
Sabemos que nas pessoas
sem Deus imperam o subjetivismo e o existencialismo. A única regra de prática
existente parece ser: "Comamos e bebamos porque amanhã morreremos."
Verificamos que nas seitas existe uma multiplicidade de padrões. Livros e
escritos são apresentados como se a sua autoridade estivesse paralela ou até
acima da Bíblia. A cena comum é a apresentação de novas revelações, geralmente
de caráter escatológico e de características fluidas, contraditórias e
totalmente duvidosas.
No meio eclesiástico
liberal, já nos acostumamos a identificar o ataque constante à veracidade das
Escrituras. Já há mais de dois séculos os liberais têm contestado
sistematicamente a Palavra de Deus, como se a fé cristã verdadeira fosse capaz
de subsistir sem o seu alicerce principal.
Mas é no campo
Evangélico que somos perturbados com os últimos ataques à Bíblia como regra
inerrante de fé e prática. Ultimamente muitos pseudo-intelectuais têm
questionado a doutrina que coloca a Bíblia como um livro inspirado, livre de
erro. Podemos tomar como exemplo o caso do Fuller Theological Seminary. Esta
famosa instituição evangélica foi fundada em 1947 sobre princípios corretos.
Logo após o seu início, formulou-se uma declaração de fé que especificava:
"…os livros do Velho Testamento e Novo Testamento…, nos originais, são
inspirados plenariamente e livres de erro, no todo e em suas partes…"
Entretanto, em 1968, o filho do fundador, Daniel Fuller, que havia estudado sob
Karl Barth, começou a questionar a inerrância da Bíblia, fazendo distinção
entre trechos "revelativos" e trechos "não revelativos" das
Escrituras. Foi seguido nesta posição pelo presidente, David Hubbard, e por
vários outros professores, todos considerados evangélicos. Logicamente não há
critério coerente ou autoritativo para fazer esta distinção. Subtrai-se da
Igreja o seu padrão, derruba-se um dos pilares da Reforma, e a Igreja é
retroagida a uma condição medieval de dependência dos "especialistas"
que nos dirão quais as partes em que devemos crer realmente e quais as que
devemos descartar como mera invenção humana.
No campo evangélico
neopentecostal a suficiência da Palavra de Deus é desconsiderada e substituída
pelas supostas "novas revelações", que passam a ser determinantes das
doutrinas e práticas do povo de Deus.
A Confissão de Fé de
Westminster, em seu Capítulo 1º, apresenta a mensagem inequívoca da Reforma do
Século XVI, cada vez mais válida aos nossos dias. Ali a Bíblia é descrita como
sendo a "… única regra infalível de fé e de prática".
D. A Reforma redescobriu
na Palavra a doutrina do Sacerdócio Individual do Crente – Hb 10:19-21
O sacerdócio individual
do crente foi uma outra doutrina resgatada. Ela apresenta a pessoa de Cristo
como único mediador entre Deus e os homens, concedendo a cada salvo
"acesso direto ao trono" por intermédio do sacrifício de Cristo na
cruz e pela operação do Espírito Santo no "homem interior". O
ensinamento bíblico, transmitido pela Reforma, eliminava os vários
intermediários que haviam surgido ao longo dos séculos, entre o Deus que salva
e o pecador redimido. Na ocasião, esse era um ensinamento totalmente estranho à
Igreja de Roma, que sempre se apresentou como tendo a palavra final de
autoridade e interpretação das Escrituras.
Lutero rebelou-se contra
o véu de obscuridade que a Igreja lançava sobre as verdades espirituais e levou
os fiéis de volta ao trono da graça. Isso proporcionou uma abertura
providencial de conhecimento teológico e religioso. Lutero sabia disso, mas
sabia também que o acesso a Deus deveria estar fundamentado nas verdades da
Bíblia, tanto que um de seus primeiros esforços, após o rompimento com a Igreja
Romana, foi a tradução da Palavra de Deus para a língua falada em seu país: o
alemão.
O ensinamento do
sacerdócio individual do crente foi o grande responsável pelo estudo
aprofundado das Escrituras e pela disseminação da fé reformada. Levados a
proceder como os bereanos, os crentes verificaram que não dependiam do clero
para o entendimento e aplicação dos preceitos de Deus e passaram a entender com
determinação as doutrinas cristãs.
A mensagem da Reforma
continua sendo necessária hoje. A igreja contemporânea está multiplicando-se em
quantidade de adeptos, mas é uma multiplicação estranha que segue acompanhada
de uma preguiça mental quanto ao estudo. Parece que fomos todos tomados de
anorexia espiritual, onde nos contentamos com muito pouco, nos achamos mestres
sem estudar, nos concentramos na periferia e não no cerne das doutrinas e
ficamos felizes com o recebimento só do "leite" e não da
"carne".
A mensagem da Reforma é
necessária para que não venhamos a testemunhar a consolidação de toda uma
geração de "analfabetos cristãos". Em vez de procurar "tudo
enlatado" e de deixar que apenas formas de entretenimento povoem nossa
mente e coração, devemos nos lembrar constantemente da importância de
"guardar a palavra no coração".
Precisamos nos aperceber
de que a objetividade da Palavra de Deus é verdade proposicional objetiva. Mas
esta objetividade tem que ser acompanhada do nosso estudo e da nossa capacidade
de compreensão, sob a iluminação do Espírito Santo de Deus, e da aplicação
coerente dos ensinamentos desta Palavra em nossa vida.
E. A Reforma apresentou,
de forma clara e inequívoca, o conceito de Soberania de Deus - Salmo 24
Na ocasião da Reforma,
as expressões de religiosidade tinham se tornado totalmente centralizadas no
homem. Isso ocorreu principalmente pela grande influência de Tomás de Aquino na
sistematização do pensamento católico romano. Abraçando as idéias de Pelágio,
Aquino enfatizou completamente o livre arbítrio do homem. Ele desconsiderou a
gravidade da escravidão ao pecado que torna o homem incapaz de escolher o bem.
Lutero reconheceu que a salvação se constituía em algo mais que uma mera
convicção intelectual. Era, na realidade, um milagre da parte de Deus. Por
isso, ele tanto pregou quanto escreveu sobre "a prisão do arbítrio".
Costumamos atribuir a cristalização das doutrinas relacionadas com a soberania
de Deus a João Calvino apenas, mas o ensinamento bíblico de Lutero traz, com
não menor veemência, uma teologia teocêntrica na qual Deus reina soberanamente
em todos os sentidos.
Hoje, a mensagem
continua a ser necessária, pois o homem, e não Deus, continua sendo o centro
das atenções. Mesmo dentro dos círculos evangélicos, a evangelização elege a
felicidade do homem como alvo principal, e não a glória de Deus. Até a nossa
liturgia é desenvolvida em torno de algo que nos faça "sentir bem", e
não com o objetivo maior da glorificação a Deus. Nesse aspecto, deveríamos
estar atentos à mensagem de Amós, que nos ensina (Am 4:4-5) que Deus não Se
impressiona com a liturgia que não é direcionada a Ele. Nesse trecho vemos que
a adoração realizada em Betel e Gilgal tinha várias características dos cultos
contemporâneos:
1. Os locais eram
suntuosos e famosos (Betel possuía belas fontes no topo da montanha).
2. A periodicidade dos
cultos e possivelmente a freqüência era exemplar (diariamente se reuniam).
3. As contribuições eram
abundantes, superando até os padrões de Deus (de três em três dias traziam as
ofertas).
4. O louvor era
abundante (sacrifícios de louvor eram ofertados; Am 5.23 e 6.5 falam também do
estrépito dos cânticos e da transbordante música instrumental).
5. Havia bastante
publicidade (as ofertas eram divulgadas e apregoadas).
6. Havia alegria e
deleite geral nos trabalhos ("disso gostais", diz o profeta).
O resultado de toda essa
adoração centralizada no homem foi a mão pesada de Deus em julgamento sobre
aquela sociedade insensível (com aquele culto, as pessoas, dizia o profeta,
"multiplicavam as suas transgressões"). Realmente, à semelhança da
Reforma, precisamos resgatar a pregação da soberania de Deus e demonstrar esta
doutrina na prática de nossa vida e na das nossas igrejas.
CONCLUSÃO
Devemos reconhecer a
Reforma como um movimento operado por homens falíveis, mas poderosamente
utilizados pelo Espírito Santo de Deus para resgatar Suas verdades e preservar
a Sua Igreja. Não devemos endeusar os Reformadores nem a Reforma, mas não
podemos deixá-la esquecida e nem deixar de proclamar a sua mensagem, que
reflete o ensinamento da Palavra de Deus para os dias de hoje. A natureza
humana continua a mesma, submersa em pecado. Os problemas e situações tendem a
se repetir, até no seio da Igreja. O Deus da Reforma fala ao mundo hoje, com a
mesma mensagem eterna. Devemos, em oração e temor, ter a coragem de pregá-la e
proclamá-la à nossa Igreja.
(Publicado em O
Presbiteriano Conservador na
edição de Setembro/Outubro de 1997)
FONTE: (Publicado em O Presbiteriano Conservador na edição de Setembro/Outubro de 1997)
retirado de http://www.monergismo.com/
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