quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A Mensagem da Reforma para os Dias de Hoje (parte 5 e final)


Martin Lloyde-Jones

por F. Solano Portela Neto



V. A MENSAGEM DA REFORMA PARA OS DIAS DE HOJE
As mensagens proclamadas pela Reforma continuam sendo pertinentes aos nossos dias. Da mesma forma como a Palavra de Deus é sempre atual e representa a Sua vontade ao homem, em todas as ocasiões, a Reforma, com suas mensagens extraídas dessa mesma Palavra, transborda em atualidade para a cena contemporânea da Igreja Evangélica. Vejamos apenas alguns pontos pregados pelos Reformadores e a sua aplicação presente:

A. A Reforma resgatou o conceito de pecado - Rm 3:10-23
A venda das indulgências mostra como o conceito do pecado estava distorcido na ocasião da Reforma do Século XVI. A Igreja Medieval e, principalmente, as ações de Tetzel, fugiram totalmente da visão bíblica de que pecado é uma transgressão da Lei de Deus, qualquer falta de conformidade com Seus padrões de justiça e santidade. A essência do pecado foi banalizada ao ponto de se acreditar que o seu resgate podia se efetivar pelo dinheiro. É fácil ver as implicações que a falta de um conceito bíblico de pecado traz para outras doutrinas chaves da fé cristã. Por exemplo: se o resgate é em função da soma de dinheiro paga, como fica a expiação de Cristo, qual a necessidade dela? Ao se insurgir contra as indulgências, Lutero estava, na realidade, reapresentando a mensagem da Palavra de Deus sobre o homem, seu estado, suas responsabilidades perante o Deus Santo e Criador e sua necessidade de redenção.

Hoje, estes conceitos estão cada vez mais ausentes da doutrina da Igreja contemporânea. A mensagem da Reforma continua necessária aos nossos dias. Estamos nos acostumando a ouvir que todas as ações são legítimas; que pecado é uma conceito relativo e ultrapassado; que o que importa é a felicidade pessoal e não a observância de princípios. Mesmo nos meios evangélicos, existe grande falta de discernimento — há uma preocupação muito maior com a necessidade de encontrar justificativas, explicações e racionalizações do que com a convicção e o arrependimento.

B. A Reforma pregou a doutrina da Justificação somente pela Fé - Gl. 3:10-14

A Igreja Católica havia distorcido o conceito da salvação, pregando abertamente que a justificação se processava por intermédio das boas obras de cada fiel. Lendo a Palavra, Lutero verificou o quão distanciada essa pregação estava das verdades bíblicas — a salvação é uma graça concedida mediante a fé e as boas obras não fornecem a base para ela; mas apenas a evidenciam e são subprodutos dela. A salvação procede da infinita misericórdia de Deus para com o homem pecador. É Deus quem arranca o homem da lama e perdição do pecado. Enfim, a obra completa da salvação é realizada por Deus.

Hoje, estamos novamente perdendo essa compreensão – a mensagem da Reforma é necessária. A justificação pela fé continua sendo esquecida e procura-se a justificação pelas obras. Muitas vezes prega-se e procura-se a justificação perante Deus através do envolvimento em ações de cunho social.

A justificação pela fé está sendo, ultimamente, considerada um ponto secundário, mesmo no campo evangélico. Assim, muitos têm partido para trabalhos de ampla cooperação, como base de fé e de unidade, como vimos no pensamento expresso pelo documento já referido: Evangélicos e Católicos Juntos.

C. A Reforma resgatou o conceito da autoridade vital da Palavra de Deus - 2 Pe 1:16-21
Na ocasião da Reforma, a tradição da Igreja já havia se incorporado aos padrões determinantes de comportamento e da doutrina e, na realidade, já havia abandonado as prescrições das Escrituras. A Bíblia era conservada distante e afastada da compreensão dos devotos; era considerada um livro só para os entendidos, um livro obscuro e até perigoso para as massas. Os Reformadores redescobriram e levantaram bem alto o único padrão de fé e prática: a Palavra de Deus e, por este padrão, aferiram tanto as autoridades como as práticas religiosas em vigor.

Hoje o mundo está sem padrão. Mas não é somente o mundo, a própria Igreja Evangélica está voltando a enterrar o seu padrão em meio a um entulho místico pseudo-espiritual – a mensagem da Reforma continua necessária.

Sabemos que nas pessoas sem Deus imperam o subjetivismo e o existencialismo. A única regra de prática existente parece ser: "Comamos e bebamos porque amanhã morreremos." Verificamos que nas seitas existe uma multiplicidade de padrões. Livros e escritos são apresentados como se a sua autoridade estivesse paralela ou até acima da Bíblia. A cena comum é a apresentação de novas revelações, geralmente de caráter escatológico e de características fluidas, contraditórias e totalmente duvidosas.

No meio eclesiástico liberal, já nos acostumamos a identificar o ataque constante à veracidade das Escrituras. Já há mais de dois séculos os liberais têm contestado sistematicamente a Palavra de Deus, como se a fé cristã verdadeira fosse capaz de subsistir sem o seu alicerce principal.
Mas é no campo Evangélico que somos perturbados com os últimos ataques à Bíblia como regra inerrante de fé e prática. Ultimamente muitos pseudo-intelectuais têm questionado a doutrina que coloca a Bíblia como um livro inspirado, livre de erro. Podemos tomar como exemplo o caso do Fuller Theological Seminary. Esta famosa instituição evangélica foi fundada em 1947 sobre princípios corretos. Logo após o seu início, formulou-se uma declaração de fé que especificava: "…os livros do Velho Testamento e Novo Testamento…, nos originais, são inspirados plenariamente e livres de erro, no todo e em suas partes…" Entretanto, em 1968, o filho do fundador, Daniel Fuller, que havia estudado sob Karl Barth, começou a questionar a inerrância da Bíblia, fazendo distinção entre trechos "revelativos" e trechos "não revelativos" das Escrituras. Foi seguido nesta posição pelo presidente, David Hubbard, e por vários outros professores, todos considerados evangélicos. Logicamente não há critério coerente ou autoritativo para fazer esta distinção. Subtrai-se da Igreja o seu padrão, derruba-se um dos pilares da Reforma, e a Igreja é retroagida a uma condição medieval de dependência dos "especialistas" que nos dirão quais as partes em que devemos crer realmente e quais as que devemos descartar como mera invenção humana.

No campo evangélico neopentecostal a suficiência da Palavra de Deus é desconsiderada e substituída pelas supostas "novas revelações", que passam a ser determinantes das doutrinas e práticas do povo de Deus.

A Confissão de Fé de Westminster, em seu Capítulo 1º, apresenta a mensagem inequívoca da Reforma do Século XVI, cada vez mais válida aos nossos dias. Ali a Bíblia é descrita como sendo a "… única regra infalível de fé e de prática".

D. A Reforma redescobriu na Palavra a doutrina do Sacerdócio Individual do Crente – Hb 10:19-21

O sacerdócio individual do crente foi uma outra doutrina resgatada. Ela apresenta a pessoa de Cristo como único mediador entre Deus e os homens, concedendo a cada salvo "acesso direto ao trono" por intermédio do sacrifício de Cristo na cruz e pela operação do Espírito Santo no "homem interior". O ensinamento bíblico, transmitido pela Reforma, eliminava os vários intermediários que haviam surgido ao longo dos séculos, entre o Deus que salva e o pecador redimido. Na ocasião, esse era um ensinamento totalmente estranho à Igreja de Roma, que sempre se apresentou como tendo a palavra final de autoridade e interpretação das Escrituras.

Lutero rebelou-se contra o véu de obscuridade que a Igreja lançava sobre as verdades espirituais e levou os fiéis de volta ao trono da graça. Isso proporcionou uma abertura providencial de conhecimento teológico e religioso. Lutero sabia disso, mas sabia também que o acesso a Deus deveria estar fundamentado nas verdades da Bíblia, tanto que um de seus primeiros esforços, após o rompimento com a Igreja Romana, foi a tradução da Palavra de Deus para a língua falada em seu país: o alemão.

O ensinamento do sacerdócio individual do crente foi o grande responsável pelo estudo aprofundado das Escrituras e pela disseminação da fé reformada. Levados a proceder como os bereanos, os crentes verificaram que não dependiam do clero para o entendimento e aplicação dos preceitos de Deus e passaram a entender com determinação as doutrinas cristãs.

A mensagem da Reforma continua sendo necessária hoje. A igreja contemporânea está multiplicando-se em quantidade de adeptos, mas é uma multiplicação estranha que segue acompanhada de uma preguiça mental quanto ao estudo. Parece que fomos todos tomados de anorexia espiritual, onde nos contentamos com muito pouco, nos achamos mestres sem estudar, nos concentramos na periferia e não no cerne das doutrinas e ficamos felizes com o recebimento só do "leite" e não da "carne".

A mensagem da Reforma é necessária para que não venhamos a testemunhar a consolidação de toda uma geração de "analfabetos cristãos". Em vez de procurar "tudo enlatado" e de deixar que apenas formas de entretenimento povoem nossa mente e coração, devemos nos lembrar constantemente da importância de "guardar a palavra no coração".

Precisamos nos aperceber de que a objetividade da Palavra de Deus é verdade proposicional objetiva. Mas esta objetividade tem que ser acompanhada do nosso estudo e da nossa capacidade de compreensão, sob a iluminação do Espírito Santo de Deus, e da aplicação coerente dos ensinamentos desta Palavra em nossa vida.

E. A Reforma apresentou, de forma clara e inequívoca, o conceito de Soberania de Deus - Salmo 24

Na ocasião da Reforma, as expressões de religiosidade tinham se tornado totalmente centralizadas no homem. Isso ocorreu principalmente pela grande influência de Tomás de Aquino na sistematização do pensamento católico romano. Abraçando as idéias de Pelágio, Aquino enfatizou completamente o livre arbítrio do homem. Ele desconsiderou a gravidade da escravidão ao pecado que torna o homem incapaz de escolher o bem. Lutero reconheceu que a salvação se constituía em algo mais que uma mera convicção intelectual. Era, na realidade, um milagre da parte de Deus. Por isso, ele tanto pregou quanto escreveu sobre "a prisão do arbítrio". Costumamos atribuir a cristalização das doutrinas relacionadas com a soberania de Deus a João Calvino apenas, mas o ensinamento bíblico de Lutero traz, com não menor veemência, uma teologia teocêntrica na qual Deus reina soberanamente em todos os sentidos.

Hoje, a mensagem continua a ser necessária, pois o homem, e não Deus, continua sendo o centro das atenções. Mesmo dentro dos círculos evangélicos, a evangelização elege a felicidade do homem como alvo principal, e não a glória de Deus. Até a nossa liturgia é desenvolvida em torno de algo que nos faça "sentir bem", e não com o objetivo maior da glorificação a Deus. Nesse aspecto, deveríamos estar atentos à mensagem de Amós, que nos ensina (Am 4:4-5) que Deus não Se impressiona com a liturgia que não é direcionada a Ele. Nesse trecho vemos que a adoração realizada em Betel e Gilgal tinha várias características dos cultos contemporâneos:

1. Os locais eram suntuosos e famosos (Betel possuía belas fontes no topo da montanha).
2. A periodicidade dos cultos e possivelmente a freqüência era exemplar (diariamente se reuniam).
3. As contribuições eram abundantes, superando até os padrões de Deus (de três em três dias traziam as ofertas).
4. O louvor era abundante (sacrifícios de louvor eram ofertados; Am 5.23 e 6.5 falam também do estrépito dos cânticos e da transbordante música instrumental).
5. Havia bastante publicidade (as ofertas eram divulgadas e apregoadas).
6. Havia alegria e deleite geral nos trabalhos ("disso gostais", diz o profeta).

O resultado de toda essa adoração centralizada no homem foi a mão pesada de Deus em julgamento sobre aquela sociedade insensível (com aquele culto, as pessoas, dizia o profeta, "multiplicavam as suas transgressões"). Realmente, à semelhança da Reforma, precisamos resgatar a pregação da soberania de Deus e demonstrar esta doutrina na prática de nossa vida e na das nossas igrejas.

CONCLUSÃO
Devemos reconhecer a Reforma como um movimento operado por homens falíveis, mas poderosamente utilizados pelo Espírito Santo de Deus para resgatar Suas verdades e preservar a Sua Igreja. Não devemos endeusar os Reformadores nem a Reforma, mas não podemos deixá-la esquecida e nem deixar de proclamar a sua mensagem, que reflete o ensinamento da Palavra de Deus para os dias de hoje. A natureza humana continua a mesma, submersa em pecado. Os problemas e situações tendem a se repetir, até no seio da Igreja. O Deus da Reforma fala ao mundo hoje, com a mesma mensagem eterna. Devemos, em oração e temor, ter a coragem de pregá-la e proclamá-la à nossa Igreja.
(Publicado em O Presbiteriano Conservador na edição de Setembro/Outubro de 1997) 


FONTE: (Publicado em O Presbiteriano Conservador na edição de Setembro/Outubro de 1997) 

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